terça-feira, maio 26, 2015

Maioria qualificada e o risco do centrão eterno

por José Vítor Malheiros
Texto publicado no jornal Público a 26 de Maio de 2015
Crónica 20/2015


No limite, um governo pode ver-se obrigado a cumprir o programa do governo anterior.

A proposta do PS de tornar obrigatória a aprovação parlamentar, por maioria qualificada de 2/3, dos programas plurianuais de investimento em obras públicas parece nascer de uma preocupação genuinamente democrática.

De facto, apesar de o Parlamento (e, por consequência, o governo) ser eleito por um período de quatro anos, acontece que é possível a um governo, ainda que não disponha sequer de maioria absoluta, assumir compromissos de longo prazo em nome do Estado que se alarguem para além do limite temporal da legislatura em que foram eleitos e condicionem a liberdade de acção dos governos subsequentes. Não só esses governos seguintes são obrigados a respeitar compromissos financeiros ou outros assumidos por governos anteriores, como esses compromissos absorvem recursos que o governo em funções não pode usar para executar os programas próprios. No limite, um governo pode assim ver-se obrigado a cumprir o programa do governo anterior e impedido de cumprir o seu, defraudando deste modo as legítimas aspirações do povo soberano e invertendo a própria lógica da escolha democrática. Coloca-se assim um problema que se poderia classificar como de “abuso de confiança” e “abuso de poder”, já que cada governo é eleito para governar apenas quatro anos e não esses e mais uns quantos depois desses.

Isto não é uma excepção: é a regra. Todos os governos assumem nos seus actos de gestão compromissos plurianuais que obrigam governos subsequentes. Só que, como este jogo tem vencedores alternados, há usualmente entre eles uma aceitação tácita deste abuso territorial, que às vezes beneficia uns e outras vezes outros.

Isto não acontece apenas nos grandes investimentos. A produção legislativa é igualmente plurianual, feita sem limite temporal. Só que existe uma enorme diferença entre uma lei e um contrato: é fácil mudar a lei, mas é quase impossível alterar o contrato que ela permitiu. A lei protege o contrato, ainda que não se proteja a si própria. Mesmo que seja alterada a lei ao abrigo da qual um contrato foi celebrado, este permanece válido na generalidade dos casos.

Esta superprotecção que a lei confere aos contratos (e acordos, e tratados) tem boas razões para existir, pois tem como objectivo proteger a confiança sem a qual a vida em sociedade seria problemática, mas cria na realidade bolsas de protecção jurídica que permitem que certos actos iníquos escapem, durante longos períodos de tempo, ao escrutínio da política. Veja-se o que acontece aos tratados da União Europeia, assinados por governos em nome dos Estados-membros da UE sem discussão interna e sem um processo democrático prévio, mas que aprisionam no seu espartilho jurídico as vontades dos povos desses países, de facto pouco ou nada soberanos.

Percebe-se bem a preocupação do PS. Como se percebe bem quando se pensa nas parcerias público-privadas celebradas em nome do Estado português (tanto por governos do PS como do PSD), e cuja vigência se estende por vezes por períodos de 30 e 40 anos, com rendimentos garantidos à custa do erário público e sem riscos para as empresas amigas que deles beneficiaram. Ou dos contratos swap, com os mesmos resultados e uma protecção jurídica semelhante.

Porém, se a preocupação do PS parece legítima, há outras considerações que se devem fazer: porquê obrigar a uma aprovação por maioria qualificada apenas as obras públicas? Por que não também as medidas no âmbito da Justiça e das privatizações, como propôs Álvaro Beleza? Ou as políticas de Educação? Ou todas?

É evidente que há matérias em relação às quais deveria ser necessário um consenso alargado (para além da Constituição, que representa esse papel por excelência). Não apenas o consenso dos suspeitos do costume, mas um consenso tão alargado quanto possível — e é também para isso que o Parlamento deveria servir. Não é legítimo que um governo, apenas porque goza de uma maioria provisória, assine um contrato ruinoso que obrigue o Estado durante 40 anos. Mas obrigar demasiadas decisões a maiorias qualificadas pode ter como consequência a paralisia de um governo ou, o que seria ainda pior, a criação de um centrão eterno, em que todas as decisões seriam tomadas e negociadas e objecto de contrapartidas mútuas entre os maiores partidos, porque os colocaria a ambos nas mãos um do outro. A política precisa de consensos, mas precisa iguamente de confronto, de contraditório, de debate, de discussão, de alternativas, de escolhas. A democracia é o regime da escolha livre entre diferentes alternativas e, se não for isso, não será nada. A escolha de um governo ou de um partido deve ser a escolha de algo, em detrimento de outra coisa. Obrigar um partido a diluir a sua identidade, as suas propostas, em nome do consenso ou da maioria qualificada não é, por princípio, a melhor opção, porque reduz de facto o leque de escolhas e, sendo assim, empobrece a democracia.

As outras propostas do PS neste mesmo domínio (transparência, discussão pública, recurso a organizações científicas) parecem muito mais eficazes, do ponto de vista do aprofundamento da democracia, do que esta maioria qualificada.

jvmalheiros@gmail.com

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