sexta-feira, maio 19, 2017

Grandes poderes, nenhum escrutínio - Crónica no Jornal Económico

Por José Vítor Malheiros

Empresas globais como a Google e o Facebook possuem um poder ilimitado de manipulação dos comportamentos.

19 Mai 2017 - Crónica no Jornal Económico/5 e última

“Um grande poder acarreta uma grande responsabilidade”. A frase tem vários autores ilustres, desde Churchill a Jesus Cristo, mas a versão que conquistou a imortalidade (“With great power comes great responsibility!”) é a de Benjamin Parker, o “Tio Ben” de Peter Parker, mais conhecido como Homem-Aranha.

A noção é central na filosofia política e no exercício da política em democracia, onde a preocupação em equilibrar um poder com outros poderes e em construir formas de escrutínio, controlo, limite e responsabilização de todos os poderes é tanto maior quanto maior for o seu alcance.

Nenhum sistema político moderno defende a concentração de poderes numa só pessoa ou organização e muito menos uma concentração de poderes isenta de escrutínio. Apesar disso, assistimos hoje a uma concentração crescente de poder na mão de um número limitado de empresas globais que, precisamente devido ao seu carácter global e à sua não-territorialidade, não são submetidas a nenhum escrutínio digno desse nome e cujo poder não é praticamente limitado por nenhuma instância jurídica ou outra.

De uma forma geral, olhamos com complacência estes poderes, que nos parecem benignos e que nos fornecem a baixo preço serviços sem os quais hoje viveríamos dificilmente. Mas qual é o verdadeiro preço que estamos a pagar?

Nos últimos meses, foram publicados na imprensa vários artigos sobre o envolvimento de empresas especializadas em guerra psicológica nas campanhas de Donald Trump nos EUA e do referendo do Brexit no Reino Unido. Estas empresas, ligadas aos meios da direita e extrema-direita globais, podem ter influenciado o comportamento de votantes indecisos através de campanhas de publicidade online extremamente eficazes, construídas com base em dados coligidos, nomeadamente através do Facebook, que permitem conhecer os valores, gostos, atitudes e comportamentos de grupos de pessoas mesmo sem conhecer a identidade pessoal dos seus membros. A questão é que um poder desta dimensão, capaz de manipular o comportamento de massas, exige um enorme escrutínio e controlo, sem o que a nossa actual e imperfeita democracia se pode ir transformando, insensivelmente, num sistema totalitário onde apenas julgamos fazer escolhas livres.

O Google, por seu lado, determina hoje quase toda a informação a que temos acesso. No passado, jornais e TV com um poder infinitamente menor, eram submetidos a regras estritas para limitar a sua influência, mas o Google, escudando-se atrás de uma falsa neutralidade dos seus algoritmos, possui um poder virtualmente ilimitado de manipulação de crenças e comportamentos. O debate sobre o controlo destes poderes é essencial, se queremos manter alguma esperança de democracia.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

sexta-feira, maio 05, 2017

Lições de francês - Crónica no Jornal Económico

Por José Vítor Malheiros

Há uma dificuldade, que é política e retórica, em combater, ao mesmo tempo, duas coisas que se opõem entre si.


5 Mai 2017 - Crónica no Jornal Económico/4

O último acto das eleições presidenciais francesas ainda não se jogou e ainda se pode saldar por uma experiência trágica, mas existem aprendizagens relevantes que vale a pena recensear desde já.

A mais evidente é o processo de desagregação dos partidos clássicos do centrão e a perda de atractividade das receitas tradicionais que preconizam. Viu-se noutros países, vê-se em França. Esta será a primeira segunda volta de eleições presidenciais da V República Francesa onde não se encontra nem um socialista nem um gaullista e onde os respectivos partidos jogam a sua sobrevivência. Os eleitores querem manifestamente outra coisa, algo que estes partidos já não lhes conseguem dar. Note-se o extraordinário resultado de uma candidatura de última hora e sem apoio formal de partidos como a de Macron. Os eleitores estão dispostos a correr riscos para experimentar novas soluções. O êxito de Le Pen é também um sinal disso.

A segunda é a constatação da ineficácia do sistema de eleições primárias como forma de escolher os candidatos com maior possibilidade de sucesso. Seja qual for a razão, as primárias não cumprem as suas promessas e produzem candidatos que geram resultados decepcionantes.

Outra constatação é que não só a extrema-direita de Marine Le Pen obtém um excelente resultado – tão bom que a sua eleição no próximo domingo deixou de ser considerada “impossível” para passar apenas a ser “improvável”. O Front National conseguiu ultrapassar o cordão sanitário a que o sistema político o tinha relegado, fazer eleitores esquecer as suas raízes nazis e normalizar a sua imagem, deixando de se apresentar como o partido do ódio e apresentando-se como um partido com soluções.

Outro facto a sublinhar, e não o menor, é o panorama de extrema confusão ideológica que se reflectiu nestas eleições, com a coexistência de discursos que identificam Le Pen e Mélenchon ou Le Pen e Macron, tornando clara a insuficiência da classificação das candidaturas no eixo esquerda-direita e a necessidade de trabalhar conceitos como o de soberania ou identidade nacional.

Finalmente, é de notar a dificuldade da esquerda protagonizada por Mélenchon em identificar o combate de hoje como o combate pela democracia e contra Le Pen (votando tacticamente Macron) apelando ao combate, a partir de dia 8 de Maio, contra o neoliberalismo de Macron. A dificuldade não se deve apenas à vaidade de Mélenchon. Há uma dificuldade, que é política e retórica, em combater, ao mesmo tempo, duas coisas que se opõem entre si. É mais fácil dizer que ambas representam duas faces da mesma moeda, que ambas representam a vitória Le Pen (ou este domingo ou daqui a cinco anos). É falso. Mas este é um problema que a esquerda tem de resolver.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.

Link para o artigo no site do Jornal Económico: http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/licoes-de-frances-154389